Belas e venenosas: o que são (e onde estão) os livros de arsênico

Estão espalhados por todo o mundo, da Europa aos Estados Unidos, volumes fascinantes, de um verde esmeralda quase hipnótico. Volumes que escondem um grande segredo, que não se encontra entre as páginas, mas justamente nessa cor magnética

Pode haver pelo menos um em cada biblioteca histórica. Alguns espécimes também estão espalhados em mercados de pulgas, acumulando poeira em alguma livraria antiga, incluindo um exemplar de Mein Kampf ou um de “O Pequeno Príncipe”. Belos livros, com uma capa de tela de um verde hipnótico, quase místico, volumes não muito raros, que escondem um segredo venenoso. Um mistério perigoso que não se encontra nas páginas, nas histórias contadas ou nas entrelinhas, mas no material que cobre estes volumes. São os chamados livros venenosos, tomos espalhados pelo mundo, confeccionados principalmente no século 19 e encadernados com um tecido verde esmeralda feito com um pigmento que contém arsênico, um elemento tóxico para os humanos.

Livros venenosos e seus efeitos no homem

Obviamente, queremos ressaltar, o perigo desses livros é mínimo, a menos que você decida ingerir a capa de um desses livros. Mas sua cor fascinante ainda esconde perigos para quem os manuseia. Pesquisadores e bibliotecários podem inalar acidentalmente partículas contendo arsênico: uma pequena quantidade pode causar tontura e letargia, bem como problemas com diarréia e dor abdominal. No que diz respeito ao contato com a pele, o arsênico pode causar irritação e lesões. Somente em intoxicações graves essa substância pode levar a consequências ainda mais dramáticas, como insuficiência cardíaca, disfunção neurológica, doenças pulmonares, danos permanentes a órgãos e, em casos extremos, até a morte.

O Projeto Livro Venenoso

Mas quantos são esses livros? Onde estão? Para responder a essas e outras perguntas sobre livros venenosos, nasceu o Projeto Livro Venenoso.um programa que visa rastrear e catalogar os volumes tóxicos espalhados pelo globo. Desde o início do projeto, em 2019, os pesquisadores identificaram 88 livros venenosos, 70 deles cobertos com o pano verde arsênico, com a substância presente também em algumas decorações e rótulos. Um número que sem dúvida não reflete o número exato desses tomos presentes na Terra, muitos deles enterrados entre as prateleiras, esquecidos entre as coleções ou em brechós. Eles podem estar em qualquer lugar, como testemunha Melissa Tedone, chefe do laboratório de conservação de bibliotecas do Winterthur Museum, Garden & Library em Delaware (Estados Unidos) e do Poison Book Project.

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Tudo começou na primavera de 2019, quando a pesquisadora se viu tendo que lidar com a encadernação de um livro da era vitoriana, Rustic Adornments for Homes of Taste, de 1857, um volume com capa verde brilhante, que durante uma análise inicial imediatamente mostrou algo anômalo. “Enquanto trabalhava ao microscópio para retirar um excesso de cera – contou Melissa Tedone ao site do Instituto Internacional para a Conservação de Obras Históricas e Artísticas – fiquei surpreendida ao reparar que o verde saía com facilidade, mesmo com uma delicada toque das minhas ferramentas Então pensei que uma tonalidade tão brilhante poderia vir de um pigmento e não de uma tinta comum”.

A descoberta do pigmento arsênico

A pesquisadora então submeteu os enfeites do livro à espectroscopia de raios-X, análise que revelou a presença de cobre e arsênico, sendo este último numa concentração média de 1,42 miligramas por centímetro quadrado, o 1,4% de uma dose letal para um adulto . A descoberta do primeiro livro venenoso deu origem ao Projeto Livro Venenoso: se existisse um tomo com essas características, era muito provável que houvesse outros em circulação. E, de fato, foi assim mesmo. Após um levantamento inicial de 400 encadernações de tecido, os pesquisadores decidiram se concentrar exclusivamente nas verdes, identificando outros nove livros com a mesma encadernação, quatro dos quais estavam abrigados em uma coleção circulante. Uma décima cópia foi encontrada na prateleira de uma livraria e comprada por $ 15. Em colaboração com a Library Company of Philadelphia, os especialistas conseguiram identificar rapidamente outros 28 livros, todos com encadernações americana e britânica, todos positivos para arsênico.

Depois de entender que se tratava de um fenômeno nada raro, era preciso entender quais seriam os potenciais malefícios para pesquisadores, bibliotecários e colecionadores de livros que, talvez sem saber, poderiam se encontrar nas mãos de volumes venenosos. Algumas amostras foram então enviadas para o laboratório de análises da Universidade de Delaware: os resultados dos testes deixaram os especialistas sem palavras. A dose dessa toxina pode chegar a até 5 mg/kg de peso corporal e apresentar complicações e efeitos não letais. Uma média de 2,5 mg/cm2 foi encontrada nas ligações analisadas. Mesmo esfregando com um simples cotonete, o resíduo liberado apresentou presença significativa de arsênico. Porcentagens menores, é claro, do que mataria um homem, 

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Como lidar com livros venenosos

Segundo Michael Gladle, chefe de saúde e segurança ambiental da Universidade de Delaware, o problema afeta principalmente os conservacionistas: “O arsênico é um metal pesado e tem alguma toxicidade, principalmente quando inalado ou ingerido. pessoas que precisam acessar esses volumes para fins de pesquisa devem usar luvas e folhear os livros em um local especialmente designado”. Do ponto de vista puramente da saúde, não há padrão de exposição ao arsênico nos Estados Unidos, como há para o chumbo, e é por isso que a Winterthur Museum Library está incentivando os entusiastas e pesquisadores atraídos por esses volumes específicos a consultar as versões digitalizadas.

Os pesquisadores também estão trabalhando em um protocolo de manuseio seguro, um procedimento de treinamento para funcionários de bibliotecas, pesquisadores e consultores de higiene industrial, para que sejam treinados para lidar com livros venenosos com segurança. Entre as “boas práticas” de quem manuseia estes volumes está a obrigatoriedade do uso de luvas de nitrilo e capela certificada, com mãos que devem ser cuidadosamente limpas após cada sessão de trabalho. O projeto prevê que os livros venenosos sejam recolhidos e guardados em um só lugar: serão lacrados separadamente em sacos de polietileno ziplock, de forma a isolar o pigmento e evitar que ele se esfarele ao se esfregar em outros livros.  

A equipe de especialistas compartilhou as informações coletadas com todos os institutos dos Estados Unidos e de outros 18 países, contribuindo para a identificação de outros volumes de arsênio. Foram criados marcadores verdes especiais que podem ser utilizados para a identificação visual da sombra associada às capas venenosas, e que podem ser solicitados diretamente ao Winterthur Museum através de um endereço de e-mail específico (reference@winterthur.org). O instituto também publicou a lista completa dos livros que até agora deram positivo para arsênico.

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Uma cor para morrer

Mas de onde vem o pigmento na base dessa cor da morte? Esta tonalidade particular, também conhecida como verde Paris, verde Viena e verde Schweinfurt, é obtida com a combinação de acetato de cobre e trióxido de arsênico. Isso cria o acetato de arsenito de cobre, uma substância tóxica que há 200 anos era usada como pigmento para colorir uma vasta gama de produtos, de papéis de parede a roupas, passando por capas e detalhes internos de livros. Não está claro quem foi o primeiro a prepará-lo, mas, como relata a National Geographic, o pigmento tóxico foi comercializado pela primeira vez em 1814 pela Wilhelm Dye and White Lead Company, uma empresa sediada na cidade de Schweinfurt, na Alemanha, com o verde esmeralda logo se espalhando também por outros lugares. Até 1860, 700 toneladas de pigmentos haviam sido produzidas na Inglaterra: naqueles anos, produtos tóxicos literalmente invadiam o globo, passando da Europa para os Estados Unidos.

Embora a toxicidade do arsênico já fosse conhecida na época, poucos conseguiam resistir àquela cor brilhante, que aliás exigia um gasto modesto para sua produção. Os papéis de parede liberavam um pó verde nos móveis e nos alimentos, enquanto as roupas irritavam a pele do usuário. Os efeitos nefastos não bloquearam o mercado desta cor nociva, que no início do século XIX encontrou um novo campo de utilização: capas e encadernações de livros. A primeira capa de tecido nasceu na primeira metade do século XIX graças à intuição do editor William Pickering e do encadernador Archibald Leighton, um ponto de viragem para todo o setor, que permitiu poupanças face às capas de pele, com livros que podiam ser vendidos a preços mais baixos.

Depois de 1840, houve um boom de livros encadernados em tecido. Os encadernadores também usavam corantes, mas o tom verde do arsênico estava muito em voga na época, por isso o pigmento começou a se espalhar também nas capas dos livros. Mas o pigmento também escondia uma grande falha: tendia a descamar e desmoronar com o tempo. Com o passar dos anos a tonalidade saiu de moda, fator que, somado à sua má reputação, significou o fim do verde esmeralda e do perigoso pigmento.